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O caso Norambuena

A prisão é o espaço destino àquelas pessoas que não foram capazes de se assimilar à sociedade, de assumir sua normatividade (ética e moral) ou para aqueles que a sociedade excluiu. Enfim, para os cidadãos – muitos nem os consideram cidadãos – que sobram. Nesses espaços existem dois grupos: presos comuns que atentam contra o Estado através de delitos comuns e presos que atentam contra o Estado através de ações de caráter política. Os primeiros são presos comuns, os segundos são presos políticos[2]. Os primeiros criam hordas criminais no interior das cadeias, os segundos desenvolvem a prisão militante-combativa.

 

É contra os presos políticos que cai todo o peso da lei do Estado Burguês, já que eles representam um perigo para a débil estrutura moral e política da sociedade capitalista. Fidel Castro e Nelson Mandela são a prova disso. Com a diferença que eles conseguiram libertar seu povo e, em seguida, estabelecer as coordenações para lutar pela liberação de outros povos do terceiro mundo.

 

O mundo ainda mantém em suas prisões alguns revolucionários que estão sujeitos aos regimes carcerários mais cruéis, degradantes e desumanos que se possa imaginar. Nos Estados Unidos, podemos citar Leonardo Peltier (dirigente indígena de 70 anos, preso há 40) e Mumia Abu Jamal (ex-Pantera Negra, 60 anos, preso há 33 anos); os Cinco Cubanos foram libertados recentemente.Na França está Carlos o Chacal, venezuelano membro da Força Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) – nascido em 1949, preso desde 1994). No Peru está Abimael Guzman, o Presidente Gonzalo, líder do Partido Comunista Peruano-Sendero Luminoso – 80 anos, preso há 23 anos. No mesmo país está o chileno Jaime Petruzzi, membro do Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA), preso desde 1993, condenado por traição à pátria peruana.

 

Todos condenados à prisão perpétua, salvo Petruzzi, que teve sua condenação revista pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Todos eles revolucionários que, desde uma luta radical e frontal contra o sistema, levantaram, em diferentes épocas, as bandeiras da construção de uma sociedade socialista.

 

Um desses presos revolucionários está no Brasil. Estamos falando de Mauricio Hernandez Norambuena. Mauricio Hernández Norambuena foi um dos mais significativos opositores da ditadura militar antes e depois da transição democrática comandada pelo próprio ditador Pinochet (até à sua morte). Em 1976, durante a ditadura, Mauricio já era militante do Partido Comunista e em 1983 ingressou na Frente Patriótica Manuel Rodríguez (FPMR), uma organização fundada como braço armado do partido comunista e que depois se separou para ter vida própria e combater - e derrotar - a ditadura no plano militar. 


Pela sua atividade de militante do FPMR no Chile, foi condenado a duas prisões perpétuas, como autor intelectual do homicídio de um Senador e por associação ilícita terrorista, sendo preso em 1993. Libertado em 1996, através de uma operação da própria organização; uma fuga de helicóptero, classificada como a fuga do século. A ação, que durou menos de um minuto e teria tido a participação do Exército Republicano Irlandês (IRA), resgatou quatro membros do FPMR, um dos quais (Ricardo Palma Salamanca) escreveu um livro sobre o fato (El granrescate).

 

Em 2002 Mauricio foi preso no Brasil, condenado pelo sequestro do megapublicitário Washington Olivetto, que não hesitou em contratar um dos mais caros escritórios de advocacia de São Paulo com o fim (processual) único de conseguir uma pena mais alta a Mauricio, além do fim (pessoal) de se vingar. Suspeita-se que tenha financiado publicações nos principais periódicos brasileiros; entre estes, se destaca a revista Veja, que publicou insuspeita matéria com o título Terror por dinheiro. Em casos como o que se trata, é frequente tentar a desmoralização do criminoso político, argumentando que ele agiu como o criminoso comum e como a sua vítima: só buscava o lucro.

 

Julgado em primeira instância, por uma Juíza de Direito, membro da Associação de Juízes para a Democracia (AJD), teve uma pena justa à luz do direito brasileiro: 16 anos de reclusão. Os advogados do megapublicitário e o Ministério Público de São Paulo recorreram para o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Resultado: a pena passou para 30 anos. Estamos falando de Tribunal conhecido por ser o mais conservador do Brasil – talvez da América Latina, talvez do mundo. Destacamos duas de suas decisões bizarras: o encobrimento do massacre do Carandiru, após distorcer decisão do júri popular que havia condenado o famigerado Coronel Ubiratan a 632 anos reclusão; a concessão de prisão domiciliar a moradores de rua. O mesmo Tribunal se deu ao trabalho de publicar um longo libelo injurioso contra a Anistia Internacional, em resposta a críticas pelos massacres na extinta prisão de menores paulista (FEBEM).

 

Preso sempre em prisões de segurança máxima, Mauricio passou cinco anos no odioso Regime Disciplinar Diferenciado (RDD); só saiu devido à pressão internacional, notadamente à decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos[3]. Passamos a palavra a Carlos Lungarzo, argentino, conhecido militante da Anistia Internacional:

 

Há vários anos que o chileno Mauricio Hernandez Norambuena vem sendo submetido ao regime chamado, de maneira eufemística e cínica, de Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que não quer dizer outra coisa senão “tortura permanente psico-somática”, embora as siglas sejam diferentes.

 

Não queremos avaliar o mérito da causa. Norambuena lutou contra a ditadura de Pinochet,  mas, posteriormente, suas ações mereceram certas dúvidas pelo fato de que nos locais onde atuou não era clara a existência de governos despóticos ou necessidade de recursos armados. Mas, não estamos falando de seus méritos políticos, mas de sua condição humana.

 

O fato é que qualquer forma de sadismo e crueldade, contra qualquer indivíduo capaz de sentir dor, é uma patologia social que nos torna, a todos, cúmplices da barbárie.

(...)

Estamos num momento histórico em que muitos setores de Direitos Humanos começam a erguer sua voz contra o sadismo dos governos e das classes dominantes, e constatamos que a crueldade do sistema prisional é tão sofisticada que muitos não chegam a percebê-la.

 

Sem dúvida, haveria um grande escândalo se, como no século 13, os criminosos começassem a ser queimados na praça pública. Mas, o tormento de sofrer bloqueio cognitivo, alterações sensoriais, permanente estado de despersonalização, é uma tortura possivelmente equivalente e que tem duração quase indefinida, até produzir o suicídio ou a loucura do detento.

 

A Constituição brasileira se mostra muito humana ao proibir a pena de morte e a prisão perpétua, mas aceita métodos que são, claramente, mais cruéis: qualquer forma de execução como as que se aplicam nos EUA, atualmente, insensibiliza a vítima em poucos segundos. A prisão perpétua normal pode acabar algum dia. Mas, ninguém pode repor-se de um suicídio ou de uma psicose profunda irreversível.

 

O sistema RDD é o irmão perverso do 41-bis da Itália, pois, apesar do total isolamento e bloqueio motriz que impõe, o sistema prisional italiano de emergência, instituído pelas leis Reale e Cossiga, pelo menos permite que o detento assista a algumas horas de TV por dia. Isto mantém um pouco, não a conexão direta com o mundo real, mas o funcionamento do sistema simbólico que permite que a mente continue fazendo conexões.

 

O sistema brasileiro é ainda pior que o sistema espanhol equivalente, e muito mais, inclusive, que os sistemas norte-americanos. Na Europa, há uma luta permanente contra a política carcerária de isolamento, mas em alguns países como a Itália, a Espanha e Luxemburgo, não foi ainda possível conseguir progressos. Em Schrassig (Luxemburgo), a pena se aplica por períodos curtos (algumas semanas) em casos de presos muito perigosos que se deseja monitorar até decidir seu destino final.

 

Entretanto, isso também é desnecessário, porque, como todos sabem, as fugas das prisões se produzem por suborno dos guardas ou, ainda pior, dos funcionários mais graduados das mesmas, sendo que ninguém pode fugir sem ajuda de uma prisão moderadamente vigiada. Se fosse assim, nos países escandinavos todos os presos estariam evadidos, pois é quase desconhecido o presídio “comum”, sendo quase todas as prisões fazendas semi-abertas, nas quais o preso leva uma vida muito semelhante à de qualquer camponês livre.

 

É óbvio que a lei nº 10.792,  que inventou o RDD, é não apenas anticonstitucional, mas incompatível com qualquer concepção civilizada, e foi inventada para satisfazer as elites linchadoras, especialmente de São Paulo e, em certa medida, do Rio(...)

 

As elites que se sentem ameaçadas, não querem apenas a neutralização do infrator, mas sua destruição física e psicológica. O RDD só pode ser tolerado em sociedades fortemente marcadas pela escravatura, onde o cidadão que não pertence à elite vive permanentemente amedrontado.

(...)

No caso específico do RRD brasileiro, a brutalidade é tamanha que os prazos fixados pela própria lei não se cumprem. Por exemplo, o caso de Norambuena que motivou as queixas de vários grupos de direitos humanos, já demora 5 anos.

 

O RDD é uma perversa inclusão do réu no Direito Penal do Inimigo, que transforma a condição de segurança de um país numa guerra (porque se considera o infrator como um inimigo global da sociedade, sem ter em conta que ele não participa geralmente do pacto social, um caso evidente não Brasil, onde a enorme maioria da população é excluída)

 

O RDD reestabelece oficialmente a tortura, como acontece no Irã, em Israel e na Indonésia, só que sob a hipocrisia de evitar a palavra “tortura”. Os efeitos dolorosos (que são procurados pelo torturador) estão todos presentes no RDD: isolamento de som, ausência de luz natural ou hiperluminosidade, bloqueio de funções motrizes com a mecanização de todos os movimentos do preso (como portas que são abertas de fora, e que impedem o detento girar uma maçaneta, contribuindo para a atrofia muscular), perda da noção de tempo e obliteração da memória em curto e médio prazos, o que acaba mergulhando a pessoa numa autismo irreversível.

 

O RDD é um simples sistema de tortura, que se diferencia do clássico por não haver utilização de ação direta sobre o corpo da vítima, mas cujos efeitos são comparáveis.

 

Por outro lado é um sistema cínico. Os infratores a ele submetidos são geralmente autores de grandes assaltos, roubos ou sequestros, e suas vítimas, que sempre são pessoas poderosas, contribuem, como é bem conhecido, para a manutenção moral e econômica do sistema, o que lhes serve como vingança.

(...)

No estado de SP, a política de tortura e vingança social tem sido permanente, pois ditada por uma elite dominante misturada com o Opus Dei e dependente dos grandes grupos econômicos que, no passado, financiaram a ditadura.[4]

 

Retornamos.

 

Talvez o primeiro presídio de segurança máxima, em regime inegavelmente atentatório aos direitos humanos, tenha sido o produzido contra os militantes da Fração do Exército Vermelho (RAF em alemão), na década de 70. Não por acaso, seus líderes se suicidaram – ou foram suicidados, não há consenso – na prisão.

 

O principal objetivo de tais tipos de prisão é o aniquilamento psicológico e físico dos presos. Tais prisões, as masmorras hightechs[5], são a mais clara evidencia por parte do Estado Burguês do temor que sente do ideal revolucionário. Creem que com a prisão brutal e impediosa podem atrasar a revolução social e esconder a sujeira do capitalismo.

 

A prisão de Guantánamo em solo cubano e sob controle dos Estados Unidos da América (EUA) atesta a brutalidade do imperialismo daquele país contra cidadão árabes e muçulmanos. Tal brutalidade também se atesta em prisões clandestinas mantidas por aquele país noutros cantos do mundo – vide o caso Abu Ghraib, onde guardas dos EUA urinavam sobre detentos muçulmanos.

 

O Brasil possui hoje quatro presídios chamados de federais, criados originariamente para afastar chefões do comércio ilegal de entorpecentes do Rio de Janeiro. Esses presídios são as Guantánamos brasileiras. Presos costumam se suicidar nesses presídios; além de presos brasileiros, destaca-se o caso do italiano Vicenzo Pompei, 51 anos, preso no Brasil pela grave acusação de uso de documento falso. O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) noticiou o caso de um brasileiro preso nessas Guantánamos por furto de bicicleta[6]. Foram inaugurados em 2006, Mauricio foi para lá em 2007. A lei sobre tais prisões só foi criada em 2008. A justiça paulista renova sucessivamente sua prisão em presídios federais sob o chulo argumento que deve ser evitado o convívio de Mauricio com a horda criminosa paulista. O que o impede de obter progressão de regime. Aliás, já direito a estar em regime aberto, ou seja, solto, desde julho de 2014.

 

A busca da liberdade de Mauricio e dos demais presos citados deve ser uma bandeira que deve ser assumida pela União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), pelo movimento continental anticapitalista e antiimperalista do terceiro mundo.

 

Os Estados, em tese, não servem para administrar vinganças, mas sim o bem comum, o que se expressa na administração da JUSTIÇA, em juízos claros e transparentes, na autodefesa e no respeito aos direitos humanos. Quando o próprio Estado é o que não cumpre com sua própria legalidade e assume a vingança, faz ruir seus próprios alicerces, se inscrevendo na ilegalidade contra sua própria legislação.

 

A liberdade de Mauricio Hernandez Norambuena, portanto, não é só uma exigência revolucionária, mas também humana, inalienável e internacional.

 

 

 

ANTONIO FERNANDO MOREIRA é advogado criminalista e advogado de Mauricio Hernandez Norambuena



[1] Tradução e adaptação de artigo de Oscar Gonzales, publicado em http://editorialrodriguista.blogspot.com.br/2014/11/la-prision-politica-como-venganza.html?m=1

[2] Não obstante a objeção da criminologia radical, no sentido de todo preso ser preso político.

[3] O processo ainda tramita, atualmente na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

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Atenciosamente, 

ANTONIO FERNANDO MOREIRA
OAB-ES 13403



 
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