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O sítio Monte Alegre é um depositário de muitas histórias. Na última segunda-feira, na minha visita a região, veio com mais força as lembranças de um passado já distante. Principalmente quando passei próximo a casa do meu avô Chico Felipe. Foi a primeira visita ao local depois da loucura que fizeram de vender a pequena propriedade herdada inicialmente do meu bisavô, o tenente João Felipe de Andrade Nunes, primeiro administrador de Luís Gomes. Penso que jamais perdoarei o que fizeram.


Tive acesso ao local pela estrada que passa em frente a casa da minha saudosa tia Ciana, casada que foi com meu padrinho João Belo de Lira, falecida pelo ano de 1982. Ele, um velho baixo de barba branca e grande costumava me colocar no colo, me fazer carinhos e me chamar de Dirceu. Era esse casal querido, na minha infância sofrida, que nos socorria nos momentos difíceis. Quase todos os dias, cedinho, eu e minha irmã, a professora Luciene Pinheiro, costumávamos sair da Escola Isolada do Monte Alegre, onde moramos por um tempo, para pegar leite na casa deles. Como tínhamos que atravessar um baixio, dizíamos, “vamos para o Outro Lado”. Pra gente era como se fosse o nome de um lugar. Fazíamos isso com cuidado porque antes passávamos por dentro de um cercado, onde tinha um engenho de moer cana e onde pastavam muitas ovelhas e carneiros. Eu morria de medo. Eram valentes, tinham chifres enormes e enrolados (...).

Guardo na memória muitos momentos daquele tempo. Na casa do meu avô, distante alguns metros da de minha tia Ciana (Ana de Andrade Nunes), onde depois morou minhas queridas e inteligentes primas GILcerlândia, Aninha e kênia, filhas de meu tio Antônio e Socorro, eu passava boa parte do dia e também dormia com frequência. Na verdade eu tinha a casa deles como minha segunda morada. Dali, lembro especialmente do terreiro da cozinha onde ficava permanentemente instalada uma balança de pesar algodão, feita de madeira e corda. No mesmo local havia ainda uns dois ou três ambientes cobertos de pedra. Cresci ouvindo minha avó Tica dizer que eram covas, sepulturas, de gente do tempo do cativeiro, de negras escravas. Ela conseguia me convencer disso e explicava que os donos dessas mulheres, como castigo por algum malfeito cometido, retaliavam suas bundas e colocavam sal, lhes causando mais tarde a morte. Também não consigo esquecer do velho e lindo pé de “coração de negro”, que ficava no oitão. 

A noite, no terreiro da frente, ao claro da lua ou de uma lamparina velha, sentávamos todos, alguns nuns tamboretes e outros numas cadeiras de balanço, cobertas de fitilho, para contar e ouvir causos, também histórias de trancoso. Eu adorava as de alma penada e de botija, mas sempre fui muitíssimo medroso (ainda sou) e por isso costumava sempre me encostar em alguém quando começavam a contar. Ainda lembro de algumas. Uma dessas botijas ficava lá pelo meio da parede do antigo açude do Biró, construído por escravos no tempo do Tenente Fortunato de Almeida, no Monte Alegre, antes de 1870. Biró, escravo, foi enterrado vivo por seu dono, no leito do riacho que mereceu seu nome. Diziam ainda, dessa botija, que nunca os escolhidos conseguiram arrancar porque sempre aparecia muita marmota, espantando e fazendo correr quem se aventurava. Dela, diziam também, era grande. Falavam de cuias de ouro, talvez sete, não lembro direito. 

Quando o sono incomodava, sempre depois da chegada do vento do Aracati, a conversa era interrompida, deixada para a noite seguinte. Cada um pegava seu assento e entrava. Era hora de armar a rede e tentar dormir. Um detalhe. Não tinha quem fizesse eu dormir próximo à porta. Era aquele alvoroço e eu sempre conseguia armá-la próxima a uma parede ou entre outras redes. Socorro, a esposa de meu tio, sempre ria e me chamava de “cagão”. Realmente eu fui uma criança muito medrosa, provocava as conversas, pedia para contar essa ou aquela história e, quando o medo batia, me arrependia. 

Infelizmente já esqueço muito das conversas. Tenho interesse em resgatá-las um dia, ajudar a preservar para que os cidadãos luisgomenses do futuro conheçam parte da nossa cultura imaterial que é muito rica, mas, lamentavelmente, ignorada. Também dizer, explicar, a luz de documentos históricos, que nossas botijas, talvez, não foram tão ricas, como conta o imaginário popular. Naquele tempo, o nosso povo não tinha como guardar dinheiro em banco, como se faz hoje. Deixar dinheiro fácil era muito perigoso. Ladrões, grupos de cangaceiros, atacavam com frequência e isso forçava o sertanejo a esconder suas jóias e dinheiro. Por isso eles enterravam. A maioria das botijas foram encontradas num canto de parede ou no pé de uma árvore, nos arredores das moradias. Acontecia muito do dono da “riqueza” morrer sem revelar o esconderijo da fortuna. Daí surgia o mito que o ouro ou dinheiro escondido, depois de um tempo, se encantava. 

Até dias desses eu pensava não mais existir alma penada e que botija era coisa do passado. Mudei de opinião quando soube que Miguel de Dona Dina, morador no Sol Nascente, recebeu uma. Antes de saber mais detalhes do ocorrido, eu lembrei de tê-lo visto, já este mês de janeiro, por dois dias seguidos, cavando um buraco onde ficava a casa de farinha do finado José Lopes, vizinho ao campo de futebol, próximo a capela São José. Suspeitei de pronto tratar-se de uma botija. E era. Pelo menos foi o que me confirmou o próprio. 

Ele me disse que foram dois sonhos, isso há cerca de um ano. No primeiro o velho José Lopes lhe apareceu e disse que tudo que ele encontrasse debaixo da base do antigo motor da bolandeira era dele (de Miguel). O tempo passou e ele não cuidou de arrancar. Depois, continuando a história, ele disse sonhou com uma mulher de idade, branca, apontando o local da dita botija. Ainda demorou até que, depois de autorizado pelo dono da terra, ele foi ao local e “meteu a chibanca pra cima”. Não deu outra, começou a juntar curiosos. Miguel disse que já estava ficando com raiva porque ouvia muita piadinha besta e tinha hora que não tinha nem como tirar a terra e as pedras do buraco com tanta gente que ficou ao redor dele. 

No segundo e último dia de trabalho ele ficou cavando até quase dez horas da noite e terminou sem encontrar nada. Ele entende que tudo deu errado devido a grande quantidade de curiosos mas que ainda vai ter outro sonho, “porque a pessoa pode sonhar até três vezes com a mesma botija”. Para evitar o que aconteceu antes, da próxima vez ele vai fazer o serviço depois da meia-noite. Quem espalhou que ele arrancou e foi fazer a troca do achado no Juazeiro, ele chamou de mentiroso.

 

Luciano Pinheiro de Almeida

Vereador do PT

 
 
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